V de Vingança: Muito Além da Anarquia, a Luta Antifascista Que a Direita Deturpa
Salve, leitores do Axioma9! Preparem seus óculos de leitura (e talvez uma máscara de Guy Fawkes, metaforicamente, é claro), porque hoje vamos dissecar uma obra-prima que, infelizmente, tem sido sequestrada e mal interpretada por setores que deveriam estar *longe* de sua mensagem. Falamos de V de Vingança, a distopia criada pela mente brilhante (e notoriamente complexa) de Alan Moore e a arte visceral de David Lloyd. Lançada na Inglaterra de Thatcher e popularizada globalmente pelo filme dos irmãos Wachowski, esta narrativa não é, como muitos gostariam de acreditar, apenas uma ode genérica à "liberdade individual" contra "o governo". É, em sua essência mais pura e urgente, um grito antifascista.
A Mão de Ferro Fascista e a Faísca da Ideia
Para entender V de Vingança, é preciso situá-lo. Moore escrevia sob o espectro do thatcherismo, mas suas preocupações eram mais profundas, tocando nas raízes do autoritarismo, da vigilância de estado e da repressão que historicamente precedem e sustentam os regimes fascistas. O mundo de V é a Inglaterra sob o jugo do partido Norsefire, uma entidade política que ascendeu ao poder em meio a um caos pós-guerra nuclear limitada, prometendo ordem e segurança. Soou familiar? O fascismo sempre se vende como o antídoto para a desordem, mas seu preço é a supressão brutal da dissidência, a criação de bodes expiatórios (neste caso, minorias raciais, sexuais e políticas) e o controle total da informação.
O regime Norsefire é o retrato cabal do fascismo em ação: polícia secreta (The Fingers), vigilância ubíqua (The Eyes, The Ears), propaganda massiva e controle da mídia (The Voice), expurgos, campos de concentração para "indesejáveis". Não é apenas "um governo opressor"; é um *estado totalitário fascista*. Ignorar essa especificidade é o primeiro passo para a deturpação. A luta de V não é contra impostos, ou contra "burocracia", ou contra qualquer outra queixa liberal clássica contra o Estado. A luta de V é contra a bota que esmaga a vida humana, a diversidade, a crítica e o pensamento livre.
E aqui entra V. Com sua máscara, sua erudição, seu amor por palavras e teatro, e sua notável habilidade para a violência coreografada, V se apresenta como uma força da natureza, um ideal encarnado. Ele é o terror que responde ao terror do Estado. Mas dizer que ele representa pura e simples "anarquia" também simplifica demais. A anarquia, em sua acepção filosófica mais rica, não é ausência de ordem, mas ausência de *hierarquia forçada*, buscando formas autônomas e cooperativas de organização social. V certamente destrói a ordem *fascista* e desmantela suas instituições. Ele incita o caos, sim, mas com um objetivo claro: criar o *espaço* para que algo *novo* e *livre* possa emergir. Seu objetivo final, como ele articula a Evey, é que o povo tome as rédeas de seu próprio destino, livre do medo e da opressão. Isso não é uma rejeição do conceito de organização social, mas sim uma rejeição radical da *forma fascista* de organização social.
A grande sacada de Moore e Lloyd é que V não é a solução em si, mas o catalisador. Ele destrói a velha ordem, mas o futuro é incerto. É Evey, a pessoa comum que passa pelo crisol da experiência e do sofrimento, que deve decidir o que fazer com a liberdade conquistada. A mensagem é que a responsabilidade pela construção de uma sociedade justa recai sobre o povo, não sobre um único herói (ou anti-herói) mascarado.
Por que, então, a direita tenta cooptar essa narrativa? Porque é conveniente. A direita, em sua vertente mais reacionária, frequentemente se opõe a *qualquer* forma de Estado que não sirva diretamente aos seus interesses de propriedade, ordem social conservadora e, ironicamente, frequentemente pendendo para o autoritarismo (vide as tendências fascistas que Moore criticava!). Eles veem em V apenas o "rebelde contra o sistema", ignorando completamente que o "sistema" em questão é um regime que eles, em outros contextos, talvez até admirassem por sua ênfase na ordem, na disciplina e na supressão de "subversivos". Eles focam na destruição, mas ignoram *o que* está sendo destruído e *por quê*. É uma leitura seletiva, que convenientemente apaga o antirracismo, a crítica à homofobia, a defesa do livre pensar e a rejeição categórica do autoritarismo inerentes à história. É como usar Che Guevara para vender camisetas sem entender nada da Revolução Cubana, ou citar 1984 apenas pela vigilância sem entender a crítica ao totalitarismo e à manipulação da linguagem pelo poder político.
V não é um libertário anti-imposto. V é um combatente antifascista. Sua "anarquia" é a demolição necessária de uma estrutura de poder opressora e genocida para permitir a *possibilidade* de liberdade. Ele luta por um mundo onde ideias não são crimes, onde a diversidade não é uma sentença de morte, onde o medo não é a moeda corrente do Estado. Esse é o cerne da mensagem, e qualquer tentativa de suavizar ou desviar essa mensagem para uma oposição genérica a "todo governo" trai o espírito da obra.
A Ideia, Afinal, É À Prova de Balas?
A conclusão de V de Vingança não é um final feliz e arrumadinho. O futuro é incerto, a liberdade recém-conquistada é frágil, e a responsabilidade é enorme. Mas há esperança na ideia de que o medo pode ser superado, que a complacência pode ser sacudida e que, mesmo contra a opressão mais brutal, a centelha da resistência e a busca pela liberdade podem reacender. A frase icônica "Ideias são à prova de balas" não é sobre a imortalidade de V, mas sobre a resiliência dos ideais que ele representa: liberdade, verdade, justiça, a busca por uma sociedade melhor.
Ignorar o contexto antifascista de V de Vingança é não apenas uma leitura superficial; é uma apropriação desonesta que serve para diluir a potência política de uma obra fundamental para o entendimento da resistência contra o autoritarismo. Em tempos onde discursos e práticas fascistas voltam a rondar o cenário político global, revisitar V de Vingança com a ótica correta não é um mero exercício acadêmico, mas um ato de lucidez e, talvez, um chamado à vigilância e à ação. A luta de V não terminou nas páginas ou nas telas; ela continua sempre que enfrentamos a opressão, a mentira e o medo impostos por aqueles que desejam controlar nossas vidas e nossas mentes.
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